sexta-feira, 27 de maio de 2011

L'automne


Sou feito criança: tenho medo de tudo e me escondo no desejo de ser. Desejo que pouco realizo, só penso, só sinto, só entendo e repito lá dentro: eu quero, eu quero, eu quero. E de tanto querer, até me esqueço de viver o que nasce em minha vontade. Sou tantas distâncias.

Tento me explicar para mim e a cada tentativa me aprofundo numa esperança logo destruída pela surpresa que é ser quem sou. Sou surpresa, não me espero. Se espero, é aí que me decepciono com o meu mim.

Eu me perco no que quero ser - não sei o que sou. Exijo demais de mim ao tentar me achar. Fujo de um eu, alcanço outro: mutação que me faz desencontrar orientações. Que caminho tomar não sei, que direção seguir desconheço. Desconheço muito, conheço muito pouco, mas o muito está sempre presente. Não sei ser pouco.

Não há muito que eu saiba ser, no entanto. Sei ser eu e me falta conserto: me desconcerto de mim. Sou dessa loucura minha pouca sanidade. Sou desse pouco o meu muito. Sou dessas vidas a mais indecifrável. Não compreendo bem, mas compreendo um quase bastante. Vê? Um quase.

Sou quase. Muitos quases. É que criança enxerga possibilidades, criança não sabe ao certo o que escolher. Criança sou eu, incerta na posição de ser, na dúvida sobre como estar, crente apenas do que sente possível. Sou criança, e, no meu medo de crescer, já amadureci muitos frutos-ideias. Mas é que nunca caíram, nem o outono me retira as folhas.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Pesadas cicatrizes

"Você mataria seu passado para salvar suas marcas em mim?" Pronunciou em sussurro contra o vento leve que atingia seu rosto. Se o vento levaria as palavras aos ouvidos certos, era a dúvida que não esperava dissolver. Há tempos seu desejo de resolução do tudo havia amenizado. Sua necessidade de esclarecer o que lhe parecia obscuro era, agora, se não uma quase inutilidade dos curiosos, um desejo que aceitaria rejeitado. Mas lá dentro sabia que inútil não era, apenas doloroso - portanto útil se permanecesse oculto, embora ainda de maior utilidade uma vez descoberto e compreendido.

As cicatrizes que jaziam em sua pele eram insuficientes. Apesar de toda a dor que causaram, desejava mais. Ansiava por mais - não pela dor, sim pela sensação cravada em sua pele de vida aproveitada, de vida usufruída, de vida vivida, respirada, sentida, vida entregue. Dessa entrega, não se encontra mais. Porque, em sua entrega solitária, não haveria compensação. Quem se entregasse, nesse mundo, era raridade. Dessa entrega, poucos sofriam - poucos sabiam se entregar.

O que queria estava além do que os olhos de outros eram capazes de alcançar. Um horizonte transcendente, um além quase invisível, pouco peceptível, dificilmente encontrado. Sofria a espera de algo que não sabia nomear, embora sentisse com tamanha intensidade que sabia existente, vivo, possível.

Todos tinham seu passado cruel e avassalador. Todos se mantinham em sua bolha protetora, incapazes de se abrir ao mundo que lá fora jazia brilhante e inabitado. Todos evitavam entrega, todos evitavam encontro. Sozinha, evitava ser todos, ignorava os valores de segurança e preservação, estudava maneiras de se encontrar e se perceber em intensidades, buscava um sozinho que buscava entrega.

Mas passados dolorosos impedem entregas - todos tinham seu passado, todos tinham passado, enfim, ninguém ficou. Sozinha ficou. Com sua maluquice, sua ideia absurda de entrega, de encontro, de fuga, de desprotegida intensidade. Sozinha ficou. Em seus desejos, em suas esperas, seus desencontros. Sozinha ficou; tudo porque ninguém desejava verdade, todos queriam mentira protetora, nada de verdade desconcertante, nada de verdade insensata, inconsequente, não, nada disso, queriam mentira que acalenta, engana e ameniza, nada de verdade... Por tanta falta, sozinha ficou, e quase adormeceu. Porque passado que pesa não dá futuro.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Café e seus implícitos


Uma xícara de café era tudo que tinha à sua frente, pensou. Logo em seguida, no entanto,  percebeu a relatividade de sua afirmação. Havia a parede, havia o ar, havia a mesa sob a xícara. Havia seus chinelos no chão, havia um mosquito por ali pairando. Havia muito à sua frente, ainda que, a primeiro momento, tudo o que pôde enxergar tenha sido a xícara de café.

Se aplicado à realidade, era como as coisas funcionavam. O óbvio: era a que se agarravam as pessoas. Coisas invisíveis, como o ar que lhe separava da parede suja, tinham sua existência ignorada. No decorrer dos dias, os valores eram dados ao que se tinha em prontidão, ao exato e evidente, nada era reservado ao implícito, ao inconstante e efêmero.

Entendeu, então, que a verdade residia nas situações mais simples, menos perceptíveis, por isso poucos sabiam enxergá-la. Seu desejo se tornou viver a simplicidade que se esconde, embora não soubesse onde poderia encontrar alguém que se dispusesse a acompanhá-lo nessa descoberta do mínimo.

Imaginou-se na calada da noite, com suas pernas entrelaçadas em outras pernas, seus cabelos embaraçados em outros cabelos, sua respiração misturada a outra respiração. O abraço, a confidência, a intimidade. O simples presente em uma visão, a verdade encontrada em sua imaginação.

Viu-se sorrindo abertamente uma alegria sincera, olhos que lhe diriam um mundo singular e extraordinário, as maçãs de um rosto doce encostadas em seu ombro. Soube onde teria verdade, soube onde mergulharia no simples e, no mergulho, acharia um modo de ser ele mesmo e viver o real no íntimo.

Por um momento, sentiu como se alguém pudesse senti-lo e vivê-lo em sua sutileza. Sentiu seus anseios como possibilidades. "Mas a vida não é como a gente quer: entre o sonho e a realidade, existe um anjo mau que resiste ao nosso desejo." Tomou os últimos goles de café junto a sua fúnebre recém nascida esperança.