domingo, 22 de novembro de 2009

Alvorada


Ela não desejava esperança. Ela amava a escuridão, a noite... E amava as estrelas que caridosamente contribuíam para o seu brilho. Ela amava a sua companheira lua, que vivazmente exubera-se na noite. Amava os vagalumes brincando entre si, enfeitando o cenário.

Ela não precisava de esperança. Ela tinha a dor e a melancolia para completá-la.

Mas o sol chegou.

A luz clareou sua visão e, quando a relutância se tornou insuficiente para afastar a claridade, ela se rendeu. Ela abriu os braços e sorriu.

Era a luz, o sol que chegava. A primavera se abria em seu coração, e ela não pôde evitar desistir da penumbra. Não era capaz de fugir dos feixes luminosos que agora destacavam-se em seus sorrisos e olhares. O sol tomou-a por inteiro, e ela deixou-se ser iluminada, deixou que o brilho a alcançasse.

Ela não teve escolha. Era a aurora de sua vida. O momento em que todos ao redor dormem serenamente; ela desperta e percebe o sol se erguendo no ar, elevando-se no horizonte. A sua noite sombria acabara.

Ela olhou ao redor e sorriu. A aurora chegara com a primavera. O céu expansivo tomou conta de seu humor, tornando-o sutil e fácil. Era o fim da madrugada, o início da manhã... Ela abriu os braços e, sem medo, sorriu. Para ser feliz.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Luscofusco


Era algo em seus olhos. Nunca saberei explicar. Eu apenas aceitava os convites que me faziam, inevitavelmente. Alguma candura, alguma amargura. Certa simplicidade. O que eu sei é que era algo em seus olhos, não saberia explicar.

- Está ficando tarde, não acha? – era um tom debochado, pude sentir.

Observei os seus olhos se erguerem à calmaria do céu daquela noite.

- Eu não acho nada. Você que me trouxe aqui.

Ele riu. Eu não vi graça alguma.

- Você é tão medrosa!

- Não estou com medo. A propósito, já acampei algumas vezes.

Ele riu mais uma vez, largando a lamparina à direita da barraca e se voltando para mim. Dessa vez estava mesmo debochando, não há dúvidas. Mas seus olhos estavam cálidos, o mel que sempre havia neles pareceu derreter a minha irritação. Então ele os aproximou sufocantemente dos meus, ainda com um sorriso leve à mostra.

- Não estou falando disso – e deslizou seus dedos minuciosamente dos meus ombros ao meu pulso, segurou-o com leveza e ergueu a minha mão, notavelmente perdido mais além da maciez da minha pele.

Eu estava assustada. Não sabia como frear o meu coração dentro do peito. Suas feições se suavizaram, os olhos que mexiam comigo alternavam entre o fechar-se e o abrir-se, talvez se decidindo a respeito de como seria mais agradável, enquanto ele se entretinha explorando a delicadeza da minha mão, beijando meus dedos, devagar, um por um. Elevou seu olhar crepuscular em minha direção novamente e, ao se aproximar um pouco mais, sussurrou:

- Estou falando disso.

E, sem me deixar pensar muito mais a respeito, tomou meus lábios em uma doçura de entrega. Ele passeava pela minha nuca, descia por minha coluna e me trazia para si. Acendeu-me, incendiou-me. E deixei-me pegar fogo.

Deixei-me ser entregue, deixei-me ser possuída. Deixei que brincasse comigo e balançasse meu controle. Apenas deixei-me lá, irracionalmente à mercê.

Era algo em seus olhos. Algo na maneira como me olhavam, sorriam e me refletiam; na alegria quando me buscavam; no sorriso quando me detinham. Eram seus olhos, havia algo ali. Algo nos seus olhos... Nunca saberei explicar.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Receios


É tarde demais, espero que entenda. Preciso ir embora o quanto antes, ainda que não seja esse o meu desejo. Não é que eu não queira estar ao seu lado, eu apenas não consigo lidar com a incerteza.

A vida me atinge com mais intensidade. Eu posso enxergar além do evidente. Leio as linhas que você vem tentando encobrir. Estou soterrando as palavras que você não diz. Acabarei de uma vez com isto, antes que comece.

O teu olhar ainda me diz algo em que estou impossibilitada de acreditar. Não posso correr o risco de crer nas tuas inverdades. Eu não vou depositar a minha fé no que há tempos deveria ter sido esquecido.

Vamos caminhar um pouco e eu posso te explicar o meu mundo. Entrelace seus dedos nos meus e seja atencioso. Você poderá perceber o motivo da minha fuga, o motivo pelo qual constantemente fujo de seus braços, por mais que ali desejasse estar.

Deves partilhar da ideia de que sou insana, incoerente. É bem provável que eu seja. Se tu puderes ignorar minhas distorções, minha falta de nexo, eu seria capaz de deixá-lo adentrar em minha vida.

É tarde, bem tarde. Em minhas veias já pulsa o desejo de possuir a amabilidade de seu sorriso. O meu sono está repleto de seus olhares. No meu riso, posso ouvir o anseio por sua companhia queimar minha garganta e gritar a sua aproximação. Já não posso fazer muito pela minha salvação. O meu egoísmo não parece funcionar dessa vez.

Talvez. É a resposta para todas as questões que me bagunçam. Diga-me o que fazer com toda essa ambiguidade. Gostaria que solucionasse parte disso. Quero que venha e me bagunce você mesmo. Ou apenas me deixe ir.

Você deve tomar conhecimento dos segredos do meu mundo, os mistérios que envolvem quem eu sou. Deslize suas mãos pela minha silhueta e deixe os seus olhos fincarem-se nos meus. Desnuda-me com a fatalidade dos seus lábios. Desvende os enigmas que há tanto tenho ocultado. Agora é a sua vez de observar a minha conduta.

E de tudo o que você consegue enlaçar com a sua habilidade, faça de mim a sua mais adorável e presunçosa conquista, o presente que você escolheu receber. Ou apenas me deixe ir...

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Delírio


Penetre em meus olhos e perceba o meu despudor. Notará que não sou o anjo que tenho aparentado ser. Não sou imaculada como talvez tenha dado a entender. Não sou celestial e pura como você certamente entendeu que eu fosse.

Eu sou mais que uma tarde límpida a observar o sol desmanchar-se no horizonte, mais que um sorriso fiel e aconchegante. Tenho mais a oferecer do que você pensou que eu pudesse.

Observo em seus traços que os fantasmas do seu passado não mentem. As figuras que silenciosamente dilatam a sua culpa, que realçam a sua impureza, são as mesmas que assombram os meus pensamentos obscenos.

Quanto preciso te contar para que acredites em mim? Quanto é preciso revelar para que você me mostre do que é capaz? Achei que pudesse ler em mim o que eu não encontro coragem para demonstrar a você. Achei que havia agido com clareza, mas parece-me que minhas atitudes tiveram efeito contrário ao desejado.

Esses sussurros, essas provocações... Não faça assim, por favor. Não enlouqueça o coração que por tão pouco se perde. Não me faça desejar suas mãos acariciando minha nuca, sua pele amaciando meu corpo, seu nariz roçando no meu.

Eu sou mais que uma risada que se desfaz, mais que um abraço mutilado. Eu tenho amor e cobiça. Sou doce, mas posso vir um tanto apimentada. Basta que me peça uma amostra, e tanto poderia te proporcionar.

Não me olhe assim, não sorria de tal forma. Afaste-se, não me faça ansiá-lo. Não quero cobiçar os seus lábios se perdendo em minha imprudência. Já está bem difícil ter controle sobre esta loucura que abrasa a minha razão. Não me faça querer sua saliva nutrindo a minha vontade.

Teu sorriso é tão assassino, a mais perfeita má influência. Não pense que te culpo, apesar de que seria bastante viável deixar as assombrações em suas costas. Apenas me deixe aliviar a dor deste crime que permaneço cometendo.

Você não deveria fingir não saber, não deveria ignorar meu chamado mudo. Seja como for, você já me tem. Não fuja agora que estou convicta.

Os pecados que acalentam a minha mente e perturbam o meu sono... Você quer que eu os pratique? A resposta me calará, eu prometo. Murmure o seu consenso, este fim. Não aguardarei mais.

Pronuncie o imprescindível para que eu tenha certeza. Apenas diga se me deseja. O fim está em suas mãos, querido, não o desperdice.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Belos olhos cálidos

Estão sorrindo para mim e, suavemente, sem qualquer compaixão, furtam-me a calma. Ficam aí, vasculhando o meu sorriso, a minha face, chegando mais longe do que me permito imaginar, e deixando-me assim, inativa e ambígua, sem nem mesmo saber o que proferem.

Fico aqui, nessa tentativa tola de decifrá-los, de entender o que têm a me dizer. Enquanto isso, eles me fogem e ainda que procure por respostas no rastro que deixam, toda a minha concentração se esvai no segundo em que o suspiro se liberta de meus pulmões lamentando o seu púbere abandono.

Vão embora sem dizer adeus, e deixam-me esperando a próxima vez na qual me visitarão. A eternidade presente na espera dolorosa e ofegante que o tempo me faz experimentar.

Eles sorriem. Delicadamente me descrevem tanto sem nada pronunciar. E eu, na ilusão de ter ouvido tais palavras, saio por aí com as mãos largadas acreditando em uma liberdade que acabei de submergir. No desejo de ouvi-las, acabo acreditando nelas, como se tivessem sido sussurradas sensualmente em meu ouvido, convidando-me a mais que um risinho abafado.

A distância que nos separa casualmente é demolida quando eles chegam, aproximam-se pouco e devagar e arrancam-me uma respiração profunda que você é incapaz de ouvir. Você sequer percebe os meus olhos evitando os teus tão insolentemente, apenas para que não possam notar o quanto de sentimento emerge em mim.

Mas são lindos, e sorriem para mim. Sussurram bobagens, mas nunca dão um decisivo adeus nem fazem promessas. É lindo, esse teu olhar morno, que sempre ao se achegar arrebata-me um brilho diferente aos olhos e um sorriso mais sutil aos lábios.

E eu continuo aqui, tentando desamparada ler as suas páginas, enquanto o coração arqueja a saudade boba que teus olhos me trazem. A saudade do quanto eles podem me aquecer durante um sensível vislumbre, de como me extinguem o deserto por desejá-los.

Olhos cálidos os seus, tão lindos e sorriem para mim.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Murmúrio


Era a angústia que percorria o seu olhar. A luz difusa da lamparina jamais foi capaz de desvendar seu segredo. Era negro, abstrato, adventício. Era apócrifo.

O cigarro queimava em seus dedos enquanto a fumaça deformava o ar. Mais um trago. Outro mais. A vida seria assim...

Seria assim. O escuro. A vida.

Arrematá-la, um objetivo. Apesar da impossibilidade de sua meta, era o que lhe mantinha vivo. Tragou mais uma vez. A fuligem a mais pura prova de sua desgraça e infelicidade. Tossiu uma ou duas vezes e largou-se.

O cochilo. O fim. O cigarro se desfez. A vida seria assim.

Os cabelos desembrenhados, escuros, lindos. Emanavam o excesso de nicotina que absorviam. Os cabelos que o outro amava, os fios que adorava.

Um ronco leve preencheu o vácuo. Inquietava-se com freqüência. Balançava os braços e espantava mosquitos. As almofadas de nada ajudavam, empoeiradas e rasgadas como se mantinham.

O sussurro de um sonâmbulo: Volte.

Nada sofreria mudança. A vida seria assim. Pesadelos, roncos, sussurros, cigarros...
Um ofego, o despertar. Lágrimas. Eram mentiras, mentiras! Mais lágrimas.

O susto o levara ao chão, agora tão maltratado e sujo. Levantou-se na medida em que secava os olhos. Suspiro. Amor, hum. O desdém.

Encostou-se na janela e observou o luar, tão indistinto aquela noite. Outro suspiro. O amor nunca veio, não voltará.

A tempestade já começara. Ainda que nenhuma gota de chuva se manifestasse ali fora. Pesadelos, roncos, sussurros, cigarros, suspiros... A vida seria assim.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Fantasma da minha imagem


A figura do espelho sorri malevolamente, oferece encanto e perigo, luz e trevas. Adoravelmente, mergulha no oceano da minha alma e passeia sorrateiramente por toda ela, desvendando segredos e calúnias. Tu podes me tocar, doce reflexo? Podes me sentir?

As risadas ecoam pelo quarto, brincam com minha sandice. A luz sempre reflete, em algum momento. Sempre estará escondida, bem à nossa frente, desafiando nossos aguçados sentidos.

Exacerbarei os meus extintos de sobrevivência. Quebrarei este reflexo, este ameaçador reflexo. Terás de ir, meu querido. Optarei pela mentira, simularei minha força. Enquanto todos acreditam que pude me livrar de meu fantasma, estarei sofrendo com a sua ausência. Permanecerás assombrando meus sonhos, engolindo meus desejos, vivendo da minha paz acabada. Meu simpático fantasma, jamais sairás de mim.

O dom natural do ser humano é safar-se. Fugir das inimagináveis situações que lhe surgem, de qualquer forma, seja essa óbvia ou não. Como humana, afastarei meus temores. Não te perderei completamente. Ao te aniquilar, terei em mim a tua eterna lembrança viva.

Não me escaparás nunca, afinal. Posso enfim te ter como o meu infindável presente. Aquele que guardarei em meu interior e cuidarei com dedicada amabilidade. Nenhum dos ventos será capaz de te levar. Estarás em mim, e só em mim viverás.

Nunca me disseram ser fácil assassinar. Talvez seja para alguns, aqueles cujos corações vivem como pedras. Mas para mim não é a melhor das tarefas, especialmente quando aquele a quem devo tirar a vida é aquele a quem tenho maior apreço.

E podemos chamar de vida isso o que tens? Isso que finjo saber que tens? Acreditar na mentira é o que fazemos, por essa costumar ser tão cômoda. A verdade beira a nossa visão, mas é o falso que nos atrai, o falso que procuramos. É nele onde os nossos deliciosos desejos encontram um lar.

É por acreditar na mentira que nesse momento matarei você. É por não conseguir me libertar de sua imagem que agora me prenderei eternamente à sua memória. É por mentires para mim que te deixo aos destroços, caído ao chão sangrando o afiado vidro.

E nesta hora me despeço de sua imagem, de seu hálito, seu perfume. Dou adeus às suas manias e loucuras. Choro a falta que sentirei de agora em diante, ainda que meu desesperado coração saiba: estarás eterna e docemente dentro de mim, continuarás vivo em meus pensamentos e sonhos. O mais açucarado delírio, a mais saborosa ilusão.

Viverás em mim, fantasma. Em mim terás sempre abrigo.

domingo, 17 de maio de 2009

Parasita morador de mim


Tempo. Tempo que me foge, que me guia, que me embaraça. Posso olhar bem em seus olhos e ainda não terei tempo suficiente para dizer o quanto são belos e arrasadores. Viajo em sua maneira faceira de dizer que não se importa realmente.
Mas o que eu posso fazer de mim? Com todos os meus desejos e futuro. O que posso fazer do meu destino quando já não sei mais o que tem à frente dele? O horizonte está vazio sem você. Então por que eu deveria sentar ao mar e observá-lo? Não há mais sentido em ser feliz se a felicidade é te ter.

Sinto o tempo correr e me deixar para trás. Como posso perder aquilo que nunca tive? Onde está a sensação de ter tudo em mãos? Os dias estão passando por mim e eu só os vejo passar. Acenos são feitos vez ou outra. A maior parte do tempo eu estou apenas respirando, apenas sobrevivendo.

Sorriso, de que me fizeste? Um bobo, um palhaço. E jamais me apareces.
Abraçando os meus próprios temores, tento encontrar neles algum motivo que me faça enfrentá-los. Procuro neles uma chance de provar uma capacidade que sei que não tenho. E se a tiver, está tão bem escondida que nunca a vejo. Talvez em alguma extremidade de meu coração, fugindo por minhas veias.

E o tempo está indo embora, deixando-me sozinha e apressada. Sinto falta de quando eu podia olhar as minhas mãos e ver nelas tudo de que precisava. Hoje, ao notá-las, tudo o que percebo é o tempo, escapando entre os espaços deixados por meus dedos.

Tento gritar seu nome e abraçar seu cheiro, acariciar seu sabor. E como posso fazê-lo, se apenas em mente posso te ter assim, só para mim? Como posso te amar se me é proibido, se sequer posso te ver?

O monstro que mora em mim desperta sempre que seu rosto passeia em minha mente, sempre que tento imaginá-lo de maneira mais próxima, quente, amável. Assim eu te quero, bem de perto. Deite em meu abraço, proteja os meus medos de mim mesma. Não deixe que meu próprio monstro me mate tão cruelmente. Por que não tenta aparecer? Por que não tenta olhar em meus olhos e decifrar meus segredos?

O tempo me sacrifica, me enlouquece. Passa e passa e passa. Mas e a dor, por que não levas? Por que ficas com minha sanidade e me deixas unicamente com o sofrimento? Quero amar, sorrir, viver. Ter você, só comigo. Mas as esperanças o tempo me arrancou também. O que me deixastes além de dor, afinal?

Deixou-me apenas a loucura. Mas que mentira agradável, não acha? Essa sobre sermos normais e iguais. Somos loucos, e mais insanos são nossos infinitamente profundos pensamentos. O que você acha de manter nossa loucura em um abrigo próprio, apenas nosso?

O coração que aqui dentro quase não respira me sufoca. Envelhecendo está, morrendo vive. Saudade sente, e é de você. Quando foi que te disseram o quanto você ainda tinha para viver? Quando foi que se deu conta de que sou mais uma egoísta dentre tantas? Quando foi que sua decisão foi tomada, que seus pulmões gritaram uma resposta?

O tempo está aí, correndo contra mim. Sussurra bobagens em meu ouvido, tentando desviar meus objetivos do centro de tudo. Quero que saiba, Tempo, que a vida também corre, e é a seu favor que se mantém tão ligeiramente desordenada.

Sabe quantos segundos me restam em vida? Acredito que os mesmos que me farão refletir sobre ela. Complexa ou simples, estão todos tentando saber. Ou ninguém além de mim está. Apenas o que sei é que você está em algum lugar a quilômetros de meu pensamento, porém nunca esteve tão preso a alguma raiz.

Libertar-se é demais para você. Precisará de mais para descobrir o quanto o meu sorriso é desastroso e assassino. Enquanto o tempo passa e passa e passa... eu continuo passando, também. Passando por um período esmagador, por uma estrada longa, por uma vida abstrusa. Passando, mas passando bem, ainda que a maldade tome conta de mim e de tudo o que sou.

Eu esperarei pelo tempo e tudo o que me trará. O orvalho das flores me convida a sentar mais uma vez neste jardim encantado. E, enquanto mantenho-me esperando, mantenha-se caminhando e seguindo ao horizonte da minha razão.

sábado, 25 de abril de 2009

A miséria ama companhia


As horas passavam impiedosamente. Cada vez que o ponteiro do relógio se movia, seu coração apertava fracamente, diminuindo sua capacidade de respirar. Seus pensamentos estavam presos no doce sabor das lembranças. A página foi virada. O sorriso desapareceu.

Abaixo das nuvens brincando no céu, jogou o relógio para o alto. Não parou para ouvir quando caiu nem onde caíra. Correu, apertando os pulmões nas mãos, sangrando mentiras.

Onde estavam as esperanças? Onde estaria aquele que lhe esperava? Onde estaria o sentido da vida? Afinal, havia sentido na vida? As perguntas cambaleavam em sua mente, embaçando seus pensamentos. Gostaria de obter respostas, mas, por outro lado, sabia que não as conseguiria ainda que vivesse toda a eternidade.
Tropeçando em um batente ligeiramente alto, caiu de bruços. Sentindo os arranhões no rosto, largou-se a sorrir. “O melhor de nós pode encontrar felicidade na miséria”, disseram-lhe certa vez.

Caminhando até uma lanchonete próxima, continuou rindo de sua própria desgraça. E, observando as nuvens passeando logo acima, agradeceu por ser humana.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Doce lua, amarga solidão


Olhe lá! Veja! É a lua... Brilhante como sempre, irradiando luz por sobre todos. Mas não deixo de pensar na dor que sente. Veja como brilha, como cada raio luminoso é trazido até nós com uma perfeição invisível e intocável. Todos apreciam a lua, mas ninguém procura compreendê-la.

A lua pode parecer bela, mas é óbvio que se sente solitária. As estrelas têm umas às outras para fazer companhia. Brincam juntas de brilhar. Mas a lua está sozinha. Não tem outra lua como amiga, não tem ninguém para ampará-la.

Sente-se sozinha porque está, e nada pode fazer por isso. Sabe que não tem ninguém por ela, mas também sabe que ela é por todos. A lua é sozinha para cumprir seu dever. Está sozinha para cobrir de luz a escuridão que machuca a vida, que tira seu brilho. Está sozinha para arrancar a dor que perfura os corações também solitários, preenchidos apenas com o sofrimento. Ela está lá, bela e radiante... Porém sozinha.

O que fazer para ajudar a lua? Veja como brilha, como acalenta as dores de todos, como diminui a escuridão infinita dos corações sombrios. Veja como sorri, mesmo que sem vontade, mesmo que sozinha, mesmo assim. Só veja, observe seus traços irregulares. Observe o quanto brilha e ilumina.

Sinto-me triste pela lua. Como ajudá-la não sei, como fazê-la feliz é um enigma. Sua beleza esconde sua tristeza, e ninguém jamais saberá ampará-la. Mas humildemente ela continuará espalhando sua beleza, sua luminosidade, todo seu amor àqueles que precisam.

A lua não tem companhia, mas faz companhia a todos. Seu bondoso coração nunca encontrado aperta ao ver a ferida invisível nas faces humanas, e por pura bondade ilumina suas noites, buscando de todas as maneiras acalmar os medos e fazer sorrir os sofredores.

O papel da lua é acompanhar, amar, acolher. Ser amiga e seguidora. Ajudar àqueles que não recebem ajuda, iluminar os que há tempos vivem na escuridão. A lua quer lhe fazer carinho, manter-lhe seguro, aumentar-lhe as esperanças. Quer ser a sua esperança. Não quer que deixe de acreditar em si mesmo, por isso mantém-se brilhando e brilhando. Confia, sorri, ampara. Tenta mostrar-lhe caminhos possíveis, clarear suas idéias. Pôr seus valores à mostra, acrescentá-los ao seu currículo.

A lua só quer ser companheira, só quer estar conosco. Ainda que não haja ninguém por ela, a lua quer ser por todos e para todos, sem pedir pagamento.

A lua só quer ser sua, minha... Nossa.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Quando te falta o coração...


Caminhava por uma rua escura, com pouquíssima iluminação. Os muros ao redor eram altos e surrados. Havia vários postes desligados e, os outros poucos restantes, reluziam uma luz fraca e amarela, que por vezes piscava ameaçando apagar. A lua estava quase invisível, coberta por uma nuvem negra e sombria. Levava nos bolsos alguns centavos para comprar o que fosse para comer e uma foto, amassada e desbotada. A foto trazia em si as lembranças daquele tempo em que tudo parecia errado e estava mais do que certo, mais que perfeito. Uma morena dos cabelos compridos e negros sorria para o fotógrafo e trazia nos braços um pequeno urso de pelúcia, onde estavam escritas as palavras: “Eu amo você”.

Tomou a foto nas mãos, beijou-a e outra lágrima caiu de seu rosto. Perdas sempre aconteciam, com todos. Mas lhe levaram justo a mais preciosa das pedras, o mais precioso tesouro. A dor em seu peito apertava de tal forma que tudo parecia não existir mais. Apertava de tal maneira que seu rosto se contorcia, as lágrimas aceleravam e seus braços abraçavam seu próprio corpo, como se assim pudesse segurar qualquer pedaço do seu coração que estivesse prestes a cair agora.

Sentou-se à beira da calçada, próximo a um poste que piscava com mais freqüência que os outros, e deixou-se abalar pela tristeza. O desespero era tamanho que de repente não sentia mais vontade de continuar o seu caminho. Como se qualquer passo que desse fosse insuficiente e desnecessário, qualquer coisa que fizesse não mudaria nada que ele gostaria que fosse mudado. Seus cabelos longos de rapaz de apenas dezenove anos caíam sobre seus olhos e grudavam em seu rosto. Chorava como se o mundo lhe tivesse expulsado de seu lugar preferido, ou lhe tivesse tirado a vida.

Abraçar a tristeza não era algo que lhe aconselhariam ou mesmo que se aconselharia. Mas era o que queria fazer. E quando qualquer ser humano decide fazer qualquer coisa, ele faz. Independentemente de ser boa ou ruim, fácil ou difícil, melhor ou pior... ele faz. Faz porque o desejo de fazer é maior que qualquer outra coisa que se lhe oponha. Então ele a abraçaria e a acolheria. Iria trazê-la para perto de seu peito, abraçá-la, beijá-la, torná-la sua. Se lhe tiraram seu maior bem, ao mal ele pertenceria.

Deitou-se no chão frio e molhado da chuva de duas horas atrás. Podia sentir seus pêlos se eriçando ao toque do chão gelado no seu corpo, mas não se importou. Deixou que a dor fizesse qualquer efeito que fosse. Trouxe a foto novamente para perto dos seus olhos e afastou os cabelos do rosto para contemplar o rosto da bela moça que lhe sorria.

“Às vezes é necessário amar para entender. Em alguns casos, qualquer estudo que se faça não é suficiente para compreender um humano. Só é necessário amar. E quando você ama, você compreende... e aceita”, dissera-lhe certa vez.

Ao lembrar dessas palavras, seu coração apertou-se ainda mais – como se fosse mesmo possível. Saboreou a dor como se saboreasse um sorriso. Deu as boas-vindas ao que lhe machucava naquele momento e sentiu a dor penetrar cada centímetro do seu corpo.
Decidiu que seria lamentável ver aquele belo rosto manchado pela água da chuva que obviamente se aproximava e tentou tomar coragem para levantar no instante em que o poste mais próximo se apagou. Seguiu seu caminho como se fosse a última e única escolha a se fazer.

Entrou em casa, sem trancar a porta, e deitou-se no sofá exatamente como estava. Era notável a diferença do chão molhado para as almofadas do sofá quentinho e confortável. Ficou contemplando a foto por mais alguns minutos até que ouviu o telefone tocar. Decididamente não o atenderia. Sair um só centímetro do lugar onde estava definitivamente não estava em seus planos. O telefone tocou até que caiu na caixa postal. O recado foi deixado:

- “Estamos ligando para notificar que ela sobreviveu. Ao receber a mensagem, retorne-nos, por favor”.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Mortos-Vivos Ou Vivos-Mortos


São espelhos que nada refletem e tudo desejam. São águas que não correm, porém caminham calmamente em direção ao nada. São palavras que não fazem sentido e dizem tudo. São rostos cheios do cansaço do dia-a-dia e repletos de empolgação perante à vida. São malucos sem insanidade, donas-de-casa que não sabem como trabalhar, abrigos solitários e vazios.

São doentes que querem viver e vivos desejando a morte. São zumbis que assombram um sono, fantasmas que buscam liberdade. São casas abandonadas em busca de real companhia. São mais palavras desembrenhadas que procuram por alguma organização.
São desejos inexplicáveis, fontes inexploráveis, assuntos inimagináveis.

São humanos – fracos, irrevogáveis, alucinados e tentadores. São animais – quietos e selvagens. São parasitas – prontos para aniquilar o que vier a atrapalhar as suas vidas – vivendo do outro, nunca para o outro.

São estradas nunca antes conhecidas, mesmo com toda a familiaridade. São ordens sem imperialismo, vontades sem profundidade. São tudo o que nos resta, e tudo o que nos falta.

São tudo. Ou nada. Mas são.