sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Caleidoscópio


Estou frequentemente observando a maneira como as pessoas olham umas para as outras - nos sentidos todos que a palavra “olhar” pode adquirir. O que me surpreende é que se vejam dentro de um caixote onde não caberiam coisas demais: como, por exemplo, diferentes características; aparentemente contraditórias, porém não necessariamente excludentes. Pressupõe-se imediatamente que uma pessoa deve ser boa ou ruim, generosa ou egoísta, sensual ou delicada, inteligente ou estúpida, extrovertida ou quietinha. Mas aí se a gente sair reparando nas pessoas do nosso cotidiano, as pessoas reais, que não são o vilão da história ou a mocinha da novela, percebe-se que a realidade foge desta dualidade de “ou uma coisa, ou outra”.

O que somos vive em trânsito. Não consigo lançar sobre as pessoas um olhar estático de permanência: “você é e sempre será uma coisa ou outra”. Não. Eu sou o que eu quiser quando eu quiser ser. Às vezes sou o que eu não quero, meio sem querer, mas não me cabe o sempre. Você também. Somos situações e nossas reações às mesmas, e nossas ações sobre as mesmas, que são diversas. Esperar que de um substantivo germine sempre o exercício de um mesmo adjetivo é limitar sua compreensão do que virá a se mostrar do outro.

Somos livres para dizer “sim” e “não” aos nossos anjos e demônios. Para pensar antes em si mesmo, dizer a verdade e guardar um segredo. Plantar uma árvore e roubar uma flor. Tentar escalar uma montanha e passar o dia de pijama na cama. Contar uma mentira no primeiro de abril e em dezessete de julho. Abrir mão de uma vontade pra não magoar alguém e fazer o que deseja apesar de alguém. Escrever uma carta de amor e outra de ódio. Ouvir canções alegres e outras melancólicas. Querer atenção e não querer ninguém. Ser silêncio e ser discurso. Caminhar devagar e correr apressado. Só falar depois de ouvir e não ter paciência pra nem mais uma palavra. Para ser abertura ou não.

É que o outro é o outro, mas pode ser tantos outros quantos forem possíveis imaginar – e outros tantos mais. É que eu sou eu, mas posso abarcar tantos outros quanto eu posso imaginar – e tantos mais -, e todos os outros serei eu do mesmo modo imensurável. Que a gente não se limite a achar que somos menos do que tudo o que somos nesta oscilação de estados em que nos apresentamos inconstantes, imperfeitos, inacabados. Transitivos (que, em vão, tentam intransitivar), somos uma combinação de reflexos coloridos que se constitui diferente a cada movimento. Somos caleidoscópio.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Ilus(traç)ão

Contemplava o espelho, em cacos, dolorosamente espatifado à sua direita. Achou bonito – os pedaços dispostos, desorganizados, refletiam sua imagem, em desarranjo. Espalhados como estavam, não lhe davam a ilusão de conhecer seu próprio rosto inteiramente. Via-se em alguns cacos, outros, virados ao avesso, não lhe representavam – os outros sim? – e questionava-se até que ponto se sabia como era.

Não sabia.

Talvez seja esta sua maior limitação (e desordem): não saber e, ainda assim, revoltar-se contra o que (acha que) sabe. O espelho era a ilusão da qual não queria se abster. Em cacos, ainda significava mais – o espelho - do que se não houvesse nada. O nada assusta, angustia, inquieta, não lhe deixa adormecer. O algo era preciso – o espelho era algo.

Acocorou-se.

Como se aproximar de si mesma se estava presa à sua imagem? Era esta sua prisão. Acorrentada ao que acredita ser, afasta-se de quem é. Seria necessário que se desaprendesse de si mesma – que seu autorreconhecimento acontecesse no “nunca” ao invés do “sempre”. Que se largasse, que se rompesse, que se destoasse, que se despercebesse.

Os cacos refletiam sua imagem, estilhaçada e incorreta, mas não lhe representavam. Ela não era os cacos dispostos no chão, confusos, imperfeitos. Ela não era a imagem que se formava despedaçada. Ela não era o espelho - o espelho não era o que lhe restava, era só o resto do que se parecia ser. O resto, às vezes, sequer faz parte do todo.

Livrar-se do espelho ainda não era a solução. Era preciso que encarasse o nada que se mostraria como o que havia de mais precioso em si mesma, o tesouro que encontrara em Si. Que se visse como quem não se enxerga para que fosse além do que alcançaria. Para que não mais houvesse o medo de que os cacos a definissem. Para que a imagem distorcida, ainda que falha, não fosse mais o seu conforto, a mentira à qual se agarra, temerosa que cair seja mais devastador do que é capaz de aguentar.

Não seria. Ela que seria...

Ela era reticências – e este nome ainda era deveras vago se para representar sua totalidade.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Abertura para (re)conhecer(se)

Eu tava ali muito dentro de mim mesma, presa naquilo que eu tinha a me oferecer ou precisava. Tava até separando o que é “dentro de mim” do que é “fora de mim”. A gente tem mesmo assim uns momentos de pensar em tudo, né? Acho saudável, inclusive. Que a gente se questione sobre o que nos faz melhor e do que é preciso abrir mão, até pra não cair no comodismo doloroso de se aconchegar num lugar que nos impede de crescer.

Aí eu tava lá. Tava quieta, tava calada, tava sozinha. Parece que quando a gente se cala, mas se cala de verdade, todos acham que você não quer falar. Ou que não tem nada a dizer. Ou que precisa de distância. Mas e quando o silêncio é você querendo ser ouvido?

- Vou fazer bem muito silêncio, muito, muito silêncio, tanto silêncio que todo mundo vai ouvir minha ausência, vão se calar pra ouvir junto comigo que o meu silêncio tá desesperado, tá dizendo tanto.

E ninguém ouviu.

Esperar que o outro ouça nosso silêncio é requerer que prestem uma atenção e um cuidado que nem todo mundo está disponível para dar. Não que devessem prestá-los todo o tempo, é que a gente se distrai mesmo. Na própria angústia, dor, alegria, anseio, raiva, desestímulo... A gente se distrai em si mesmo e do outro.

E a gente esperando o outro lá, distraído, vai se contraindo, inquieta. Quieta. É que esperas são árduas e a gente já cansada de se calar...

Um silêncio bem, bem alto às vezes não é suficiente. Decidi que meu silêncio não era audível, mas não porque quem estivesse por perto não quisesse ouvir. Não é que as pessoas não estão disponíveis, que não estão abertas, é que elas também se calaram. Calaram os ouvidos para o que não é paixão, os lábios para o que não for doçura, os dedos para o que não for arrepio, os olhos para o que não for belo, o nariz para o que não for perfume. E a gente que está lá com uma angústia que não é sorriso nem sabor nem fragrância não é percebida. E a gente que está lá com uma angústia que quer ser ouvida não percebe que o outro tá ali oferecendo beleza e músculos relaxados.

Eu falho em notar no outro o que ele não me diz em palavras, sem perceber que ele está me dando todos os sinais no jeito que tomou o café hoje de manhã, quando não riu da piada que eu contei, no olhar disperso fora da janela, no abraço com ombros recaídos, no meio sorriso que se ergue de um lado só. Até o convite que não chega para comemorar o fim de semana me diz do que é preciso ouvir. E eu, que preciso tanto, tanto falar, calei os ouvidos. E ele, que precisa tanto, tanto sorrir, calou as tristezas – inclusive as alheias. E o outro, que precisa tanto, tanto se distrair, calou a atenção. O que a gente não diz, deixa escapar.

Aí outro dia vieram me falar que quem muito guarda o que sente sem compartilhar com os outros compensa a ansiedade comendo. E eu ando mesmo ganhando peso: o peso do não-dito.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Ambivalência afetiva



Tinha os olhos borrados
de mágoas
E os lábios manchados
de dúvidas

Na íris, suas palavras
desenharam-se
fervorosas

“Eu te odeio”

No instante que se deu
ele, calado,
sentiu-se amado
como nunca.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Erupção vulcânica


“- Como você se experimenta?”

Violenta. Feito uma dose de whiskey. Escorrego queimando a garganta deixando-me sem controle. Apresento-me ardente em minhas entregas. Excessiva, desgovernada. Volta e meia percebo-me extasiada em minhas emoções abrasadoras. Mas se eu não sei é que eu não sei mesmo e é por não entender – é por não saber – que eu me encho dos vazios. Vazio é não saber, então? Às vezes sinto-me vazia por perceber tão claras minhas convicções e isto desaloja. Viver é não saber; se penso saber, não estou vivendo? Ou talvez esteja confundindo minha condição humana com a minha própria vida e na verdade vivo mesmo enquanto acredito saber, ainda que intimamente reconheça minha impossibilidade de conhecer a verdade das coisas. De mim mesma, que escorrego queimando a garganta, que perco o controle sobre mim.

“- Whiskeys... São os melhores, também os mais caros”.

Quer dizer que vou pagar caro por ser quem eu sou? Se pensar o que eu penso, se fazer o que eu faço, se sentir o que eu sinto, se compreender o que eu compreendo, se ver o que eu vejo, se ser o que e como eu sou, se tudo isto tem um preço: devo ser eu mesma custe o que custar? O que estou perguntando é se eu devo ser a violência com que me atinjo – e acabo assim atingindo os que me cercam. Não tenho propriedade para afirmar com toda convicção: pressione (ou não) o gatilho. Sei que uma vez puxado o gatilho, serei a primeira a ter o próprio sangue pulsando no chão.

Custa-me caro ser eu mesma.

“- Talvez seja o momento de tomar doses menores, então”.

E abrir mão do que é intenso em mim. Do que me vem inteiro. Do que emerge excitante, excitado. Do que me destrói. Das minhas ruínas, nas quais já enxergo meu vício. Deste grito que sou. Deste explodir-se, estatelar-se, estarrecer-se, expandir-se, romper-se. Abrir mão do que se eleva serelepe e decai angustiado.

Abrir mão: soltar os dedos um a um para que se deixe ir o que se segurava. Não é a primeira vez que careço de me deixar de lado para o meu próprio bem. Já disse? Sou um perigo para mim mesma. E aí preciso abrir mão de mim: soltar os dedos – um a um – de maneira a me deixar ir. Mas apenas o suficiente para que se torne saudável ser quem eu sou; e que assim eu possa respirar com tranquilidade e menos palpitações entre as chamas que despejam fora de mim.

domingo, 7 de abril de 2013

Da raiz submersa à beleza dos frutos

Enredado na melodia, sucumbiu. Uma espécie de entrega ao cigarro que não tragava. Fitava-o, apenas. Numa sutileza de aforismos, arrancou-se de si mesmo e encarou a ponta que queimava bonita, reduzindo o papel e o tabaco às cinzas; desfeitos, eram quase nada. Ele era quase nada. Sentiu-se pequeno frente à imensidão de desejos, e quereres, e deveres, e sentidos, e significâncias. Emergiu um breu, calado, sutil.

Na parede mofada, as fantasias todas; os silêncios todos, gritando. A solidão era de uma beleza sem fim, tanto que lhe encarava e lhe apontava as alegrias todas com uma irreverência dos mais livres, dos que se doem de tão entregues a tudo e quase nada. Sorria-lhe debochada, a parede, cheia de vivências pretéritas, também das vivências que, prestes a acontecer, surrupiavam de leve sua tranquilidade.

Decerto havia o que lhe cegava, o que lhe calava, o que lhe tapava os ouvidos e tantas vezes sua própria respiração, mas no tato era capaz de desvendar em si os segredos por ora irreveláveis desta ausência de verdades. Era sutil entregar-se a si mesmo; ainda assim era intenso encontrar-se em sua própria perdição.

E era mesmo no silêncio que se realizava o encontro em que se perdia. No silêncio realizava-se, vivia a si mesmo como a uma experiência espiritual de marcas irreversíveis. Acreditava em sua própria beleza silenciada pela fumaça agora dispersa pelo cômodo. Havia sim um comprometimento com a sua própria imagem, mas na verdade ainda alcançava a coisa em si, como numa dança descoordenada de passos mal ensaiados que enriqueciam o espetáculo. Era beleza, era ternura, era verdade, alcance, entrega. Mas se via como era e era esta sua suficiência. E foi aí que descobriu, afinal:


Trancar-se em si mesmo era de uma liberdade sem tamanho.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Des-ata-me


Calaram-se os lábios 
o peito desatou a falar.
Sem pausas
nem palavras
O nó desfeito desata o peito.
O peito desnudo
desata sem dó
a dor calada
Se calado o peito,
desata o nó e
desfaz a vida
Sobre os lábios ternos
de pausas e palavras, enfim
o silêncio interno
eterno

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

"Amor verdadeiro" é conversa fiada


Sempre que alguém fala em "amor verdadeiro" e se dispõe a enumerar características que o definem, a minha língua começa a coçar de um jeito, só na vontade de sair questionando tudo em que a pessoa acredita. Não me entenda mal a pensar que eu não acredito nessa coisa às-vezes-linda do amor. Talvez não seja atrevimento dizer que é quase minha religião. Mas se tem uma coisa em que eu não acredito é num conceito pré-estabelecido de amor. 

Amor não é metafísica, não assim. Talvez “meta” e “física” tenham mais sentidos no amor assim separados, desconectados, em frases diferentes até, se é que você entende o que quero dizer, mas acho mesmo é que amor não tem sentido algum. Inútil procurar. A gente vai dando uns sentidos aqui, outros acolá, mas sabe lá o que está por trás disso tudo. Se sequer tem um atrás, uma frente, dois lados, nenhum, vai saber. Quem tenta saber com certeza já está meio desesperado no meio disso tudo. Vamos combinar que angustiante é mesmo, isso de não saber. Classificar tudo é nosso jeitinho de achar que se está entendendo, sem saber mesmo é de nada.


Pois pra mim? Cada um com seus amores, isso sim. É cada uma!


Não vou abrir a boca pra falar que “amor de verdade é assim”, que “quem ama mesmo faz desse jeito” ou “isso não é verdadeiro” porque, nossa, quem determinou como as coisas deveriam ser mesmo? Aposto que quem entendia era nada. Eu que também não entendo prefiro me recolher e reconhecer que estou limitada apenas a sentir – e já me basta. 

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Ninho


Que eu me aninhasse em teus braços
Feito pássaro assustado
Feito assim sem espaço
Que fosse longe do teu coração

Que eu me envolvesse em teus cabelos
Feito se envolve em cobertor
Feito se deparasse com o amparo
Que afasta as dores e odores e o torpor

Que eu me encantasse em teus olhos
Feito teu olhar fosse só meu
Feito fosse teu o olhar meu, erradio
Que te canta e contempla sutil

Que eu me enganasse em tuas palavras
Feito fossem mais do que foram
Feito soubesse menos do que sabia
Que até me permitisse acreditá-las

Que eu soubesse de teu passado
Feito quem lhe tivesse sido uma falta
Feito quem lhe teria sido presente
Que se desembrulhava pra te acompanhar

Que eu me debruçasse em teu peito
Feito fosse eu o cansaço do mundo
Feito foste tu o meu ninho
Que eu, feito passarinho
Da viagem em busca de sustento
Retornasse pro meu alento
Para só em teu seio, sossegar

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Chama


- Tu tá diferente.
- Diferente?
- É.
- Diferente como?
- Não sei, diferente.

Silêncio.

- Mas diferente de quê?
- Hm, como é mesmo o adjetivo que usei mais cedo? Apagado. Tu tem estado apagado.
- Apagado? Feito lâmpada e fósforo?
- É. Mais feito fósforo do que feito lâmpada.
- Por quê?
- O fósforo se acende de vez assim e quando vai se apagando queima o dedo.
- Sei...
- É...

Silêncio.

- Mas eu queimo o dedo de quem?
- Você sabe.
- O seu?
- Até que me atinge inteiro no corpo.

Silêncio.

- Então sou chama?
- É. Só que não me chama mais.
- Acho que apaguei.
- Acho que eu te apaguei.
- Não, eu apaguei. Mas não quis queimar seu dedo.
- Mas me queimou inteiro.
- Desculpa.

Silêncio.

- Outro dia. Agora tenho que cuidar de onde você feriu.
- Tudo bem, a gente se vê então.
- A gente se vê.

Silêncio...

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Cheira-testa, beija-cabelo


Queria dizer antes de mais nada que estou escrevendo em razão do cheiro do seu cabelo quando eu te abraço. Você é uma menina singular, sabia disso? O cheiro de ninguém muda assim, só porque eu cheguei bem perto, olhei nos seus olhos e beijei sua testa. Mas eu já era capaz de sentir as maçãs do seu rosto coradas de um jeito que fica ainda mais bonito em você.

Sabe, menina, quando eu encontrei você naquele bar, olhar perdido nos sorrisos dos bêbados eufóricos que passeavam até o banheiro ou à pista de dança, rímel escorrendo no rosto e batom acumulado nos arredores dos lábios, o corpo carregado de angústias que a vida traz, tenho certeza de que você saberia dizer com clareza o propósito de cada um naquele lugar. Você é dessas: capta a coisa sem que a coisa mesmo saiba que está sendo captada ou que você esteve de olho na coisa. Mas eu poderia jurar que você não fazia ideia do que eu queria (e quero, mesmo hoje).

Entre tequilas e piadas ruins, você me ganhou nesse jeito teu de olhar como se não quisesse nada e mesmo assim querendo tudo. Tu me faz cometer uns bons erros de concordância nominal, tanta é a vontade quando me sinto à vontade contigo. Queria pedir outra dose, e outra, e outra, só pra estender aquele momento em que eu olhava pra você pedindo mais e você me olhava pedindo “devagar” enquanto sussurrava “mas tenho pressa”. Até porque sempre me odiei que nunca fui capaz de fazer sentido no que desejo, mas quando esse paradoxo era em você, era sexy feito seu jeito de abaixar a cabeça pra rir mas depois levantar o olhar com um meio sorriso.

Do mesmo jeito que você me deixou sozinho naquele bar sentindo que eu só queria mais um pouquinho de você, a gente vai se deixar em algum lugar dessa vida. Pode ser que a gente divida mais uma mesa, mais doses de tequila, que eu repita minhas piadas ruins pra você rir sem graça depois. Acho até que vou te beijar na testa muitas vezes ainda. Sei que tu vai captar meu jeito antes mesmo que eu perceba que estou sendo decifrado, até porque consigo ser bem previsível quando estou de bem comigo (tanto que é certeza que vou errar concordância quase sempre que estiver contigo, tu me faz um bem danado, pequena, faz mesmo).

Mas antes que a vida me jogue pra um canto longe do teu, tu precisa saber: o cheiro do teu cabelo quando eu te abraço é das coisas mais gostosas que eu senti nessa vida, ainda mais quando eu sei que você corou e deu um sorrisinho silencioso pra eu não perceber. Mas eu soube, eu sempre sei. Porque eu tô sorrindo silencioso aqui dentro também e isto eu sei que você também já captou, menina, você é muito esperta. Tão esperta que vai embora da minha vida antes que eu limpe o canto do seu olho manchado de rímel e tente consertar suas angústias como se fossem minhas. Só não vá embora antes de perceber que o cheiro do seu cabelo fica diferente quando eu tô do teu lado, pequena. Não vá embora antes de perceber o que é seu quando sou eu que estou com você. Te deixo ir embora – e você vai mesmo – mas leva alguma coisa de mim que eu guardo o cheiro de você; mas me deixa ficar em você que vai embora.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Sobre beber cuidado e não engolir água


 - “Toma cuidado” – as pessoas dizem umas às outras.

É de beber? Não sei tomar cuidado. Não sei se tem pra vender ou como aprender, não sei se é automático ou se a gente custa a entender como se faz, sequer sei se cuidado é coisa para se tomar mesmo. Às vezes parece que se você não for o cuidado que pedem para que você tome, não tem jeito, não tem saída – o descuido vem logo a seguir. E se eu não for o cuidado? O descuido é meu próximo passo, assim como os últimos que caminhei?

Faço tudo como se faz um mergulho – ora estou na superfície, ora já estou molhada, afundei-me, ensopada, nadando, sem chão e sem ar. Se não dou tempo para me molhar aos poucos, se não espero me acostumar à mudança de temperatura e de pressão: vou me afogar? Porque talvez não saiba nadar. Digo isso porque minhas experiências passadas não são suficientes para me fazer lidar com o presente como quem já tudo sabe. Não é porque sempre soube nadar que desta vez meu mergulho terá a beleza de quem sabe o que faz e se realizará com a destreza de quem não falha. Posso falhar – e afundar.

Lembro-me de certa vez profetizar um mergulho sem receios que se realizou quase em silêncio no meio do mar. Bonito falar de mergulhos sem receios porque dá a entender a falta de importância de preocupar-se com a profundidade que se atingirá. Mas é que uma vez que se mergulha fundo, uma vez que se esteve prestes a afogar... Me fale o que sabe sobre o medo e você entenderá.

Mas se me falar em cuidado e mergulho, saberá que cuidado não se toma como se pode beber a água em que se pretende adentrar. Se não sou o cuidado ao mergulhar, sou o descuido do mergulho – fugaz, veloz, intenso, profundo, repentino e efêmero. Se sou passageira, gostaria de entender os sentimentos que não são. Que mesmo quando vão, voltam. Que mesmo que voltem, se vão. E são para sempre, mesmo que não sejam contínuos.

Sou para sempre? É que eu me sinto contínua. Até quando durmo, respiro. Posso me transformar no ar que entra em meus pulmões sem que eu possa controlá-lo. E se com descuido permito que me invadam, que entrem em mim e, sem controle, permito que me preencham os pulmões e me façam entrar em transformação, eu não sou cuidado, sou descuido. Sou descuidada. Se me permito transformar-me no ar que respiro, sou descuidada. Se me deixo respirar o ar como quem de ar precisa, sem me desafiar a me privar do ar de que preciso, se me deixo precisar do ar e sem ar não viver, sou descuidada. Se me deixo precisar de qualquer coisa que não seja eu, e se como desculpa me transformo no que eu ainda não era, se me transformo no ar para que possa precisar do ar sem culpa, puta merda, eu não sou cuidado, sou descuidada.

Se eu não sei do mergulho, do nadar, do que virá, do que passou... Se eu não sei do cuidado, do que respiro, do que é contínuo, do que é para sempre... Se eu não sei tomar cuidado ou beber da água em que mergulho... Se eu não sei... Meu deus, se eu não sei, o que é que me resta? O que me sobra? Só a ignorância de quem mergulha esperando coisas bonitas. De entrar na água torcendo para que esteja bem quentinha e gostosa, de nadar rezando para não torcer o pé bem no meio do caminho. Afinal, se eu sou o descuido, no meu mergulho há apenas esperança. Que isto me baste.