Estava acordado fitando
o relógio, a parede, a porta, qualquer coisa... Só pensava no
quanto eu queria dormir; merecia, precisava. Repetia “quero dormir
quero dormir quero dormir”, incessantemente. E era uma mentira
descarada, deslavada, eu já sabia: queria mesmo era tua ligação,
feito em tantas madrugadas, pra gente viajar falando sobre nós dois
até subitamente se perceber discutindo a relação entre política e
religião, ou tudo mais que não se deve discutir.
Tu me meteu numa
enrascada, e eu fico feito idiota te colocando a culpa só pra não
assumir que eu estava mesmo muito a fim de cair nesse buraco e me
ralar todo, sair ferido e orgulhoso. Já não podia ser diferente, a
gente fez tudo quanto não se deve fazer e agora que tá tudo feito,
ficam as reminiscências, e as dúvidas, o que eu deveria, o que eu
poderia, o que eu queria... Mas nada tá presente, nem embrulhado,
nem bonitinho. Restou uma saudade estúpida, uma vontade de escarrar
e cuspir da janela, mas ninguém tá aqui pra reparar meus atos
dramáticos que querem responder a qualquer coisa que não se nomeia,
mas precisam falar; pareço criança insatisfeita com o brinquedo que
ganhou de Natal.
Eu fico me enganando
sobre quereres e vontades, tudo pra ignorar o que eu quero de
verdade, que é jogar verdades na sua cara. Não que eu as tenha, mas
queria tê-las. Sair cheio de razão enumerando tudo o que você
precisa ouvir e engolir em seco, mas eu que engulo e tá seco mesmo
porque não sei o que te falar. As certezas são de que você precisa
ouvir, e de que eu preciso falar, e de que eu quero te ouvir, quero
que tu fale, mas aí eu te calaria com um beijo, colaria tua testa na
minha, seguraria teu cabelo e não ia saber me aguentar de coisa
sentida, coisa vivida, coisa que pulsa.
Mas é bem assim que eu
imagino te reencontrar. Vou ignorar meu constrangimento pela testa
suada e vou querer te colar bem perto de mim, vou querer te trazer
pra tão perto, vou querer entrar dentro de você, por um momento ser
você, e colar no teu pescoço pra gravar teu cheiro na memória, na
pele, na saudade, e beijá-lo como se fosse matéria, como se fosse
tu. Não faz sentido pensar no quanto eu queria te falar tanta
coisa, se eu quero teu silêncio colado na minha nuca, num
abraço, na gente por mais tempo que quero tuas palavras, pelo menos
tempo suficiente pra sincronizar minha respiração com a tua e eu
esquecer que tenho raiva, que tenho mágoa, que tenho medo – ainda.
Tenho uma saudade
alimentada por não ditos, nascida em tudo o que nos dissemos, e que
vai crescer cuidada por silêncios e faltas. Vai dar um problema
danado isso daí. Quero nem pensar no tanto de coisa que uma
saudadezinha, coisa que parece tão pequena, assim, só uma, quero
nem pensar no estrago que a bicha faz. E eu tô tratando feito bicho
mesmo, coisa que eu tenho que cuidar, aninhar, alimentar e levar ao
médico; que quando eu chego do trabalho, já vou olhando pra ela
assim, com carinho, e ela saltitante chegando perto, só faltando me
dizer “até que enfim você vai ter tempo pra mim”, e eu quieto
sem querer dizer que queria me manter ocupado sem precisar cuidá-la.
Vou acabar te
encontrando na padaria, de bermuda e regata, com meus olhos
recém-acordados e descuidados, e tu lá, bonitinha feito a porra,
com um jeito muito teu de ganhar minha atenção, vai me desejar “Bom
dia!” como se não tivéssemos jamais compartilhado intimidades,
experimentado limites e desafiado vontades. E eu, com meu ar
despreocupado, ferido e orgulhoso, vou disfarçar o que em mim vai fervilhar, vai gritar,
vai acordar e estremecer; estarrecido, vou agir com tranquilidade;
inquieto, vou aparentar controle; as pernas bambas estarão firmes e
o sorriso torto parecerá natural. Vou dizer nada do que queria, não
vou roubar teu cheiro nem te colar comigo. Serei a mais perfeita
atuação da indiferença, e tu, talvez atuando, talvez sincera, vai
receber o troco, dar um último sorriso e as costas.
E tu vai embora,
amarrando a bolsa de pão. E eu vou ficar lá, com uma saudade
desamarrada e, na garganta, tudo entalado, sem descer de tão seco,
repetindo que a culpa é tua – pra não dizer que sou a vítima de
mim mesmo.
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