sexta-feira, 1 de junho de 2012

Sobre o vinho derramado



Tinha vinho no tapete. Há semanas. Eu me sentava à beira, mastigava alguns cereais, assistia desinteressada aos filmes da TV, fazia as unhas, de cabelo bagunçado, com a coluna torta, pensava bobagens, derramava lágrimas, nunca sorria. Vivia uma vida que não era minha porque tinha vinho derramado no tapete há semanas.

Saía para trabalhar como quem carrega um fardo. As pessoas soavam estranhas de tão estúpidas, fúteis, arrogantes, sorridentes, falsas. Todos aqueles olhos bem abertos esperando minhas falhas, meus tropeços, aguardando um motivo para cochichar com alguém ao lado o quanto sou errada nos mínimos detalhes que são tão meus, o quanto sou arrogante por não sentir necessidade de cumprimentar ninguém, como meu jeito de falar parece pedir que alguém me cale pois já cansaram de me ouvir. São todos assim, vampiros dos equívocos alheios, caçadores dos defeitos de ninguém, precisam todos que você se contradiga, que você não faça direito, que você seja ridículo, para que possam se sentir menos contraditórios, errados, cômicos.

Todos precisavam que eu caísse. Tão logo me acostumei à mediocridade do meio, parecia natural cair. Era natural que eu não quisesse mais levantar. Era esperado que eu errasse – e que esses erros pesassem em minhas olheiras, na minha postura desleixada, no meu aguardo por nada, em mim.

Voltava para casa como quem alcançou o ápice do dia. À beira do tapete, lia revistas que interessavam em nada, bocejava aberto, passeava em roupas íntimas sem receio de ser observada – pois nem seria -, adiava tudo quanto podia. Vivia esperando pois sabia que nada aconteceria e nada teria de ser feito, então.

Gostava do cheiro de vinho impregnado no tapete, que eu não sabia se estava mesmo lá ou se eu sentia apenas por desejo. O cheiro me maltratava, prendia-me ao tapete, impedia-me de lavá-lo, cansava-me de lembranças. E eu observava a mancha de vinho em meu tapete e mais parecia assistir às ondas do mar em seu ir e vir infinito. Já não sabia mais.

Eu me tornei o medo do que há lá fora, pois só em meu tapete havia vinho derramado. Caminhava pela casa, seguia ao banheiro, dormia em meu próprio quarto, mas ciente de que logo voltaria à sala, sentaria à beira do tapete e, talvez de olhos fechados, inalaria aquele vinho já compenetrado há semanas.

À beira do meu tapete, embriagada de memórias, eu me agarrava à mancha de vinho que fizera de uma noite a minha vida inteira.

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